Jussara Lucena, escritora

Textos

Nem príncipe, nem mendigo

Qual a minha idade? Não faço a menor ideia. Sei que nasci na Europa, o país também não sei. Quando me entendi por gente, meus pais já haviam partido a bordo de um navio para o Brasil. Fugiam da primeira Grande Guerra. Viajaram disfarçados para evitar a discriminação. Depois disso, vagamos por todos os cantos desse país. Éramos algumas dezenas, hoje somos muitos mais.
Desde muito cedo aprendi a conhecer as pessoas pelas suas mãos. Ler a sorte. Nunca adivinhei o futuro de ninguém, nem soube qual seria o meu, mas o que cada um e como ele pode construir o seu futuro, isso eu sei muito bem.
Tem algo de que me orgulho: a minha memória. As mãos de cada pessoa são diferentes, únicas. Algumas se complementam em outras, tem muito em comum, linhas e histórias convergentes. Recebi o dom de identifica-las e registrá-las.
Os antepassados de meu povo nos ensinaram a ajudar qualquer um, independente das suas posses ou da sua inteligência. Sempre tive como obrigação ler ao menos as mãos de uma pessoa por dia, sob pena de uma vida mais curta ou menos intensa. Aprendi a ler mãos e não matemática, então não faço questão de saber quantas pessoas já passaram pela minha leitura.
Certa vez uma senhora me recomendou que eu estudasse astrologia. Ler e escrever foi algo que não aprendi. O que sei, recebi de meus antepassados e me basta. Também não quero transformar meus conhecimentos em números, eles escravizam e são tão duros quanto o tempo que algumas vezes falta ou nos castiga com uma permanência longa, o meu caso.
Assim, quando leio mãos, as associo as datas de nascimento: dia, mês ano e hora. Na minha cabeça, agrupo as pessoas pelas características de suas personalidades. Não, duas pessoas que nasceram na mesma hora, dia, mês e ano de nascimento, não são iguais. Uma pessoa que encontrei me disse que no mundo nascem mais de cem crianças por segundo. Se todas tivessem a mesma personalidade, teríamos uma centena de Ghandis ou de Hitleres e não haveria espaço para todos eles no mundo.
Não conheci nenhuma personagem importante na minha vida, nossos caminhos não se cruzaram, ao menos até esta parte da minha jornada neste mundo. Mas vou contar um pouco sobre dois sujeitos que passaram pela minha vida. Por que lembro deles? Nasceram no mesmo dia e mês que eu nasci. Só que entre eles havia mais algumas coincidências: nasceram no dia 25 de julho de 1963, às 19h30min e tinham linhas que sinalizavam uma convergência.
O primeiro, conheci num garimpo. Tinha as mãos calejadas e sujas. Elas eram médias e quadradas, podiam até sugerir que o sujeito pudesse buscar algo grande na vida, quem sabe saber expressar-se melhor, ou ser organizado. Porém o polegar flexível indicava que podia pecar ela força de vontade. O dedo indicador menor que o anelar revelava que ele teria muita dificuldade em lidar com o dinheiro. Seu Monte de Júpiter acentuado, revelava que ele seria generoso, sociável. A linha da vida era longa e ele teria que carregar a sua cruz por um bom tempo. A linha da cabeça era curta e ele não conseguiria encarar a vida com muita inteligência. Sua linha de Saturno não estava bem definida, não saberia se decidir por uma profissão. Já a Linha de Mercúrio era muito fraca, quase apagada. Sim, ele ficaria doente, teria dificuldades em controlar o pensamento. A cabeça não o ajudaria com a racionalidade.
Não pude ser totalmente sincera com ele, não compreenderia. Preferi deixa-lo com os seus sonhos. Na hora de pagar, me perguntou se eu queria receber em ouro, me mostrando numa bolsinha cheia do metal brilhante em sua forma bruta ou com as notas de cinquenta de uma carteira recheada. Respondi que eu aceitava as duas coisas. Deixei Tomás, que já abraçava algumas garotas na porta de um bar.
O segundo encontrei alguns anos mais tarde, sentando num banco de rodoviária. O observei por alguns instantes. Lia atentamente um livro. Na capa, uma jovem de pele clara, cabelos presos, aparecia deitada, nua. Não sei se dormia ou jazia sobre os panos. Os olhos do rapaz se moviam rapidamente como que a devorar cada uma das linhas. O invejei por conseguir decifrar os códigos daquelas páginas.
Abordei-o e propus a leitura das mãos. Ele agradeceu e voltou ao livro. Então lhe pedi que me contasse um pouco do que via no livro, em troca eu lhe diria a história que via em suas mãos. Ele achou a troca justa. O ônibus demoraria a chegar. O livro era “O perfume – história de um assassino”, escrito por um autor chama Patrick Süskind, um alemão, segundo ele. Fiquei curiosa, pois meu avô contava muitas histórias da Alemanha.
O rapaz me contou a história do pobre jovem de olfato muito sensível que nascera sem odor próprio e era ignorado por todos a sua volta. Pensei comigo que apesar de ter um cheiro não muito agradável, a maioria das pessoas também não percebia a minha presença. Grenoille aprendeu a criar os melhores perfumes da França e apaixonou-se pelo cheiro de uma bela jovem e tentou apoderar-se dele matando-a. Antes, havia feito o mesmo com outras. Tragédias marcavam a vida das pessoas que o cercavam. O jovem leitor descrevia algumas das cenas da Paris medieval e eu me lembrava das histórias contatadas pelo meu avô, que dizia ter vivido mais de quinhentos anos, e falava de cenas similares.
Eu queria conhecer o final da história, mas ele não havia terminado o livro. Lamentei. Então, cumpri a minha parte do trato e interpretei as linhas de sua mão. Quando ele me passou as informações de seu nascimento, imediatamente as liguei a do garimpeiro conhecido tempo atrás. Não comentei nada.
As mãos deste outro nascido em 25 de julho de 1963, as 19h30min era diferente. Os montes eram macios, mãos médias, que sugeriam ser criativo. Já seus polegares eram pouco flexíveis, em forma de L, sinalizam uma pessoa adaptável, que age pelo instinto e intuição, com responsabilidade. Não tinha medo de trabalhar ou de correr riscos. O dedo indicador do mesmo tamanho do anular me dizia que estava bem preparado para enfrentar o futuro. O dedo médio reto previa uma vida emocional, social e financeira equilibrada. O dedo mínimo na mesma linha da dobra da falangeta do dedo anular predispunha uma facilidade em se expressar e fazer bons negócios. Seria uma pessoa apaixonada pela vida, que talvez fosse longa e saudável. Seria muito mais prático do que talentoso. Com este homem pude ser mais franca. Ao despedir-me sugeri que escrevesse os próprios livros. Ele ficou surpreso e disse nunca ter pensado nisso, muito embora gostasse de escrever, em seus estudos. Ele puxou a carteira do bolso, não aceitei. Tínhamos feito um trato. Eu disse a ele que eu ainda viveria muito e quem sabe um dia o encontrasse, aí perguntaria qual foi o final da história. Ele assentiu com a cabeça e esboçou um sorriso.
Mais de trinta anos se passaram. Eu passava por uma cidade da região central do Rio Grande do Sul. Caminhava pela avenida principal, ainda não havia cumprido o meu dever do dia. Não havia encontrado nenhum voluntário, apesar da minha insistência em ler mãos. Cansada de tantas abordagens, passei a olhar as vitrines das lojas e, quando passava em frente a uma livraria, algo me chamou a atenção. Aquilo fez com que pela primeira vez eu entrasse naquele mundo de livros, que me assustava por não poder aproveitá-los. Tinha muita gente lá, e um sujeito autografava alguns livros. Olhei com mais atenção. É claro que me fixei em suas mãos. Eu já as conhecia. Olhei nos olhos do escritor e entrei na fila.
Eu estava de mãos vazias. Ele me olhou nos olhos e me perguntou:
- Para quem devo escrever a dedicatória?
- Não meu filho, não precisa. Só gostaria, se possível, que você me contasse o final daquela história.
Ele me olhou com mais atenção, sorriu e respondeu?
- Grenoille conseguiu desenvolver o perfume tão desejado. Passou a ser admirado por todos, tratado como um rei. Porém permaneceu infeliz, não era ele a quem as pessoas amavam e sim o seu perfume. Morreu e os miseráveis que habitavam a região do Cemitério dos Inocentes dividiram a sua carne entre si para saciar a fome.
- Obrigado! Vejo que seguiu meu conselho.
- Faz pouco que comecei. Espero que a sua outra previsão também aconteça e eu consiga escrever ainda mais, ao menos por mais alguns anos.
Peguei a mão dele, comparei a mão destra com a canhota e confirmei para ele que ele havia se mantido na linha do seu destino, da sua missão. Ele apanhou um livro, fez uma dedicatória, e leu-a para mim. Nela me dizia que ainda era tempo de aprender a ler, conhecer ainda mais do mundo, viajar nas páginas dos livros, pois meu corpo não aguentaria a vida nômade por muito tempo. Me despedi e saí.
Caminhei por duas quadras e assustei-me com o som de batidas de carros. Uma Brasília descia a avenida na contramão e atingia os carros estacionados ao longo da via.
O motorista do veículo desgovernado desceu atordoado, parecia não se dar conta do que havia feito. Uma multidão se juntou e ninguém entendia o que havia acontecido. Todos pareciam conhecê-lo. Alguns mais exaltados o agrediam com palavras e outros tentavam protegê-lo.
Aos poucos a multidão foi se dispersando e a polícia registrava a ocorrência, enquanto o homem, desorientado, permanecia sentado no meio-fio, com as mãos na cabeça.
Ofereci uma garrafa de água que eu carregava e ele aceitou. Bebeu, permaneceu em silêncio por alguns instantes, me olhou e disse:
- Certa vez eu encontrei uma cigana, quando estava no garimpo. Eu tinha algum ouro e muitas notas de cinquenta. Eu sonhava em sair de lá e comprar uma Brasília. A gente vale o que tem no bolso, né? Quase morri no garimpo, mesmo sendo da paz. Me mudei para a cidade grande. Me casei três vezes. Tive um bocado de filhos. Fiquei um pouco ruim da cabeça e passei muitos anos num hospital. Agora vivo um pouco mais só. Continuei trabalhando, roubar é feio, meu pai dizia. Queria começar de novo. Já fiz muita coisa nessa vida. Logo agora que eu consegui comprar a Brasília, vão guinchar.
- Me de sua mão! – Pedi.
Era inacreditável, encontrei no mesmo dia, na mesma cidade os dois sujeitos nascido em 25 de julho, às 19h30min. Os dois eram muito diferentes.
- Minha vida vai melhorar? – me perguntou o pobre homem.
- Será o que você quiser - respondi
O homem saiu dali, pegou a bolsa que estava no carro e lhe fora entregue pelo brigadiano. Dela tirou uma garrafa spray, um pequeno rodinho, um balde e foi para a esquina limpar o para-brisas dos carros que paravam no sinal. Enquanto eu caminhava pela praça, ele continuou ali, por algumas horas. Cansado, sentou-se num dos bancos.
Do outro lado da praça, vinha caminhando o escritor. Ao longe observou o homem desdentado, chorando no banco. Parou em frente dele, pediu licença para sentar-se. Eu também sentei-me num banco próximo e acompanhei a conversa.
- Boa tarde! Meu nome é Eduardo. Escrevo histórias, quer me contar um pouco da sua?
- O senhor tem bastante tempo? Meu nome é Tomás, gosto muito de falar, só não tenho conseguido muita gente que me escute. Eles têm pena de mim, um pouco de medo também. Me ajudam, é claro, mas guardam distância. Meu nome é Tomás, mas alguns me chamam de Vinte e Cinco.
- Vinte e Cinco! Mas por que Vinte e Cinco?
- Eu nasci em 25 de julho.
- Que coincidência, eu também. Em 1963.
- Não vá me dizer que foi às 19h30min?
- Isso mesmo. Em São Paulo.
- É, não somos gêmeos, eu nasci aqui no Rio Grande mesmo. Além do mais somos bem diferentes.
- Vamos ver se nossa história é parecida com a escrita por Mark Twain.
- Mark o quê?
- Foi um escritor norte-americano que nasceu no século XIX. Ele fez muitas coisas, foi tipógrafo, piloto de barco a vapor e até mineiro, antes de tornar-se um dos maiores escritores americanos.
- Então esse é dos meus! Eu também fui mineiro. Tinha muito dinheiro...
Os dois apertaram as mãos e conversaram até o anoitecer. O escritor comprou um lanche para ele e para o homem da Brasília. Um novo aperto de mãos e cada um seguiu para o seu lado. O homem da Brasília com um livro na mão e o escritor com uma fotografia no bolso. Tomás havia dito que era da filha. Na realidade, na borda da foto estava impresso o nome de Reese Witherspoon. Pude ver na leitura de seus lábios enquanto ele observava o retrato sorridente.
Meu neto veio me buscar. Precisamos pegar a estrada. Uma nova cidade, novas mãos me esperam.

Texto que faz parte do Livro em busca do conto perfeito da Big Time Editora, 2018.

Adnelson Campos
24/10/2018

 

 

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